O turno da noite
E
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la não resolvia falar
muito. Meu ódio impedia de pensar. Queria que ela chorasse e gritasse para que
eu risse da sua desgraça, mas tudo o que ela fazia era ficar calada no canto da
cela. Maldita mulher. Cadê teu choro? Cadê tua súplica? Por quanto tempo mais
iria se esconder por trás da sua máscara de paciência?
Como ordenado, não
deixei que nenhum homem se aproximasse da cela. Depois de um longo tempo, meu
superior avisou que eu dividiria a função com Hartley, um outro jovem combatente
que havia se unido à Guarda. Ele, no entanto, assumiria os turnos diurnos,
enquanto eu assumiria os noturnos. Por doze horas eu estaria com meus olhos
vidrados naquela figura incrivelmente quieta.
‒ Comment tu t’appeles?
Olhei para os lados sem
entender de onde vinha aquela voz rouca e misteriosa. Percebi que era de Joana. A bruxa tinha mesmo tido a ousadia de
falar comigo. Não soube o que responder para ela. Ainda ousava pronunciar o seu
francês nojento e carregado de “erres”. Ignorei. Não fui instruído a conversar
com ela. Ninguém me disse nada quanto a isso.
‒ Como você se chama,
inglês? ‒ Finalmente em meu idioma. Não tive como fingir que não era comigo.
‒ Wilbor Edengard. Meu
nome é mais forte do que a sua magia, bruxa. Eu não tenho medo do que você
possa me fazer. Sobrevivi à fúria de homens. Não há nada que você possa me
fazer de mal. É só uma mulher. Uma bruxa maldita! ‒ Vociferei.
Joana riu e moveu-se
dentro da cela. Ela não parecia tão forte, por detrás das grades. Gargalhava
como se eu tivesse dito algo bizarro. Quando seu rosto se virou na minha
direção, ela me analisou de cima a baixo e eu pude ver seus olhos. Havia algo
de diferente neles. Diferente dos olhares que eu via nas outras mulheres.
Diferente também dos homens que guerreavam. Ela devia mesmo ser uma bruxa.
Nenhuma pessoa normal teria olhos como aqueles.
‒ Você, Wilbor, é
podre. Como todos os homens, você não pode aceitar que uma mulher defenda o seu
país. É claro que eu sou uma bruxa. Se ser uma bruxa é ser independente do
poder dos homens, considere-me A Bruxa. Eu não sou uma mulherzinha que você
casa para fazer sua comida.
‒ Se todas as mulheres
da França são assim, agora eu entendo por que seus homens resolveram fazer a
guerra.
‒ Meus homens fazem guerra
porque acreditam em um mesmo ideal. Por isso a França está vencendo. Nós temos
uma razão para entrar nessa guerra. Mas você tem razão. Se todas as mulheres da
França fossem como eu, já teríamos vencido essa guerra há muito tempo.
Não respondi. Não valia
a pena se humilhar tanto assim. As palavras dela eram inúteis. É muito fácil
querer parecer corajoso, estando atrás das grades. O destino dela estava
selado. Seria morta quando o rei ordenasse sua execução. Com sorte, seria eu a
levá-la para a fogueira, para queimar junto com suas heresias. Mantive a minha
guarda. Por um momento, percebi que nunca tinha montado guarda na vida. Minha
primeira experiência como soldado da Guarda Real era proteger a prisioneira
mais vigiada. Havia algo de estranho com essa promoção imediata.
Joana D’arc não parecia
muito diferente de uma mulher comum. Tirando aquele olhar diferente que tinha,
suas mãos e seu corpo eram no geral como o de uma mulher. Se eu não soubesse
que ela matou ingleses, talvez eu a achasse bonita. Olhar para ela era um jogo
de resistência. Era muito difícil desviar atenção do seu rosto, mas, por outro
lado, era revoltante demais fixá-lo.
‒ Você deve ser novo na
Guarda. ‒ Ela disse, se pondo de pé.
‒ De onde você tirou
isso?
‒ Eu encontrei com a
Guarda Real da Inglaterra uma vez. Consegui despistá-los. Contudo, eu sei que
nenhum membro da Guarda iria aguentar ficar tanto tempo calado depois de ter me
encontrado.
‒ O que foi de tão
horripilante que você fez a eles?
‒ Eles é que me fizeram
algo terrível, Wilbor. Eu estava tomando banho no rio quando me encontraram.
‒ Na certa viram sua
pele de dragão. ‒ Eu ri. ‒ Devem ter saído correndo.
‒ Você insiste que eu
seja uma bruxa não é? Sou tão diferente de uma mulher inglesa assim?
Eu tive que olhar para
ela. Joana se aproximou e parou a uma distância segura. No todo, parecia estar
trajando apenas um corpete. Eu nunca tinha visto uma mulher com tão poucas
roupas. Pelo menos não uma mulher de respeito. Joana D’arc com certeza não era
uma mulher de respeito. O modo como se vestia, como duelava... Tudo indicava
isso. Ela não era respeitável.
‒ Uma mulher inglesa
não se despiria de tal forma.
‒ Como quer que eu
batalhe com um vestido com cauda e todo o resto? Eu não seria A Joana D’arc se
me vestisse como uma mulher de burguês. ‒ Disse a mulher com toda a pompa que
nunca parecia sumir.
‒ Tem também seus
olhos...
‒ O que tem com eles?
‒ Algo diferente. Nunca
vi no olhar de nenhuma outra mulher. Eu não sei como explicar. É algo forte.
‒ Será que o inglesinho
está se apaixonando?
‒ Por você, bruxa?
Jamais me apaixonaria por uma bruxa. Você é uma herege e só. Nenhum homem
amaria você.
‒ Ora, verdade? Então
me beije.
‒ Como? Quer que eu te
beije?
‒ Exatamente. Se você
não tem medo de mim? Que mal faria um beijo? Considere esse o último pedido de
uma combatente.
Aproximei-me das grades
com certo temor. Eu nunca mantinha guarda, não sabia se haveria alguma
restrição quanto a beijar prisioneiras. Mas também, devido ao grande número de
homens que viviam presos, acredito que não seria necessária uma lei para tal. É
algo que ninguém sonha em fazer.
Parte de mim estava
tentada a dizer não, mas outra parte queria conhecer essa sensação. Então
avancei alguns passos e, enfim, eu beijei Joana D’arc.Chapter one Chapter three (26/09)
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