Dias de guerra
O
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s dias passavam
estranhos desde a última vez que estivemos em campo. Muitas baixas. Muita
morte. Nem ao menos os combatentes mais experientes puderam sobreviver ao
último massacre. A França esmigalhou nossas defesas. Temíamos que a guerra
pudesse ter sido perdida.
Andava com meu batalhão
pelas margens do rio Tâmisa, sem saber que notícias receberíamos quando
alcançássemos o palácio. Todos estavam exaustos. Mais pelo desgaste emocional
do que pelo físico. A maioria de nós era muito jovem. Recrutado cedo para
defendera Inglaterra contra o exército francês. Eu mesmo nunca tinha me
imaginado brandindo uma espada ou furando um homem com ela, mas na guerra,
temos que fazer o que é necessário. E muitas vezes é necessário abrir mão da
nossa imaginação.
Quando marchamos para a
França, muitos tremiam, choravam e ainda preservavam a noção de que haveria um
acordo pacífico que poria fim a guerra. Eu mesmo era só um menino ingênuo.
Filho de sapateiro, sabia como costurar uma botina ou como tratar o couro de um
bovino. Imaginava o dia que eu me casaria com Emily Donway e juntaria o comércio
da minha família com a produção de animais dela. Teríamos couro de graça e
baratearia o custo da produção. Hoje, os poucos que retornam da guerra já não
sonham mais com nada. Talvez uma comida decente, ou em reencontrar um amor.
Contudo, para mim, já não contenta mais a pecuária dos Donway.
A primeira vida que
tirei em campo foi de um menino, não mais do que 13 anos. Foi ele quem me
atacou. Do contrário nem o teria visto. Ele podia ter fugido do campo de
batalha que ninguém daria conta. Os franceses duelavam como se tivessem um
propósito por trás daquilo. Cada homem que se unia contra nós tinha uma
voracidade que eu não vi nos olhos de nenhum inglês. Fui ferido no primeiro
minuto. Um corte na perna. Foi quando percebi o garoto. Tentei lhe dizer que
parasse. Eu não queria matá-lo, eu disse. Porém a criança berrava um francês
maldito que eu não conseguia entender. Dei-lhe um empurrão. Um cavalo passou
por cima. Ele estava muito machucado.
Olhei com atenção para
a criança. A guerra parecia me ignorar. Notei os outros franceses e pensei, não há como salvar esta criança. Nenhum
homem virá ao seu socorro. Então eu decidi que era a coisa certa a fazer.
Um corte na sua garganta faria a dor passar mais rápido, mas uma espetada no
peito faria ela acabar de vez. E acabou. Foi quando eu entendi a guerra. Vendo
todos aqueles homens, eu percebi que cada francês que eu poupasse era um inglês
que poderia morrer. Eu tinha que matar para que mais do meu povo pudesse
retornar para suas casas.
Meu esforço não foi tão
suficiente. De volta para casa, sentia raiva de cada francês que eu não matei.
Raiva de cada um deles que ainda respirava em liberdade. Enquanto o meu povo
sofria com a derrota. Não estava interessado em defender a Coroa. Muito menos
em casar com Emily Donway. O mais importante seria preservar a minha vida e a
de todos que lutavam ao meu lado. Na volta para casa, percebi que eu queria ser
um soldado.
A chegada ao palácio
nos rendeu uma salva de palmas. Gritos de uma multidão inglesa que sabia
reconhecer o valor do seu povo. Um povo que lutou para que cada um deles
pudesse viver. Não recebi as palmas com alegria. Imagino que se mais ingleses
estivessem vivos, seríamos merecedores destas honras. Notei mais três batalhões
que haviam chegado antes de nós. Seus homens pareciam realmente felizes em
saber que mais alguns de nós havia deixado a guerra com vida.
Quando perguntados quem
gostaria de se juntar a Guarda Real, muitos dos meus compatriotas declinaram a
honraria. A maioria, jovem como eu, queria retornar para a calmaria da rotina e
viver os seus dias como sempre foram planejados. Marcar casamentos comerciais e
trabalhar para seu sustento. Junto comigo, mais seis do meu batalhão aceitaram
integrar a Guarda. Tínhamos 24 horas para retornar para casa, rever os
familiares e retornar para o palácio.
Não me demorei muito em
casa. Expliquei para meu pai que tinha recebido o convite para trabalhar no
palácio e ele se orgulhou muito. Meu irmão mais novo poderia se casar com a
mais nova dos Hadlemore, já que Emily Donway parecia ter se envolvido com o
filho de um burguês que fugiu da guerra, não era mais interessante ter o nosso
nome associado ao deles. Minha mãe fez o drama de sempre, mas entendeu que era
uma escolha para o bem da nossa família. O prestígio de trabalhar na Guarda Real
iria honrar o nosso nome por algumas gerações. Eu era um sobrevivente de guerra
e isso não seria esquecido de forma alguma.
‒ Quando você volta,
meu pequeno? ‒ Ela perguntou com os olhos cheios de lágrimas.
‒ Não sei mãe. Talvez
um dia eu volte para casa. Por enquanto vou morar com meu batalhão.
‒ E como se casará?
‒ Tenho certeza de que
posso fazer um bom casamento, mas o mais importante é a defesa das nossas
terras. E isso eu tenho por garantido.
Retornei para o palácio
antes do prazo limite. Queria chegar antes para demonstrar meu compromisso para
com a Coroa. Assim que cheguei, notei algo que chamou minha atenção. Uma
mulher, talvez da minha idade, sendo levada por guardas da forma mais brutal
que se pode imaginar. Multidões gritavam palavras de ofensa então pensei que só
poderia se tratar de uma pessoa. A mulher mais odiada da Inglaterra. Uma
francesa. Joana D’Arc.
Reportei-me ao meu
superior e ele me agraciou com a notícia que eu queria ouvir. Eu seria
encarregado da vigia da bruxa francesa. Não poderia permitir que nenhum homem
se aproximasse dela e deveria guardar o turno completo. Só poderia desmontar
guarda caso ele mesmo, em pessoa, me dissesse para fazê-lo. Joana D’Arc era
minha responsabilidade até o dia em que ela queimasse na fogueira, se Deus
quisesse.
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