Eu amo uma bruxa
V
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oltei para cobrir meu
turno. Tinha tentado dormir durante a tarde, mas minha cabeça continuava
voltando para o beijo. Pensei em ir ao padre, me confessar. Como eu poderia ir
a igreja e dizer que tinha beijado aquela herege? Na certa, eu seria executado junto
com ela em meio a uma fogueira ardente. Assim, que cheguei para cobrir o turno
da noite, Hartley me perguntou se ela tinha me dito alguma coisa na noite
anterior. Eu tremi, mas disse que não. Ao que parecia, ela tinha assumido a
postura muda diante dele. Ao menos não tinha dito nada sobre o nosso beijo. Eu
ainda estaria a salvo.
Por alguns minutos,
senti o mesmo silêncio atrás de mim. Eu esperava que ela fosse dizer alguma
coisa, fazer algum comentário, pedir outro beijo. Não. Ela não disse nada. “Oi,
Wilbor, como foi a tarde de folga?” Não. Ela não queria saber de mim. Se era
para ser assim, eu também não perguntaria nada. Ficaria quieto esperando que
ela me chamasse. Bem quieto. Nenhuma palavra seria dita por mim.
‒ Como passou a tarde?
‒ Perguntei, não cabendo em mim.
‒ Passei bem. Tão bem
quanto se pode passar aprisionada. ‒ Respondeu ela amargurada.
O que havia acontecido
com a mulher que me beijou na noite anterior? Teria ela sucumbido a bruxa
herege? Onde estava escondida a Joana que eu queria encontrar? Fiquei calado.
Não valia a pena ficar tentando puxar assunto com uma bruxa que seria morta logo.
Eu não podia deixar que ela tivesse poder sobre mim. Se ela quisesse falar
comigo, ela falaria e se eu respondesse, seria por pura piedade.
Nunca imaginei que
montar guarda pudesse ser tão entediante. Não podia ficar sentado, devia
manter-me de pé indefinidamente. Sem ninguém para falar, sem nada para fazer.
Tentei recordar dos meus momentos na guerra. Imaginei se já teria cruzado
espadas com Joana D’arc. Porém tudo o que eu conseguia lembrar era do beijo.
Bolei mentalmente uma lista de motivos para uma mulher beijar um homem. (1) ela
estava apaixonada por mim; (2) ela queria lançar algum feitiço sobre mim; (3)
ela queria saber como um inglês beija; (4) ela queria alcançar a chave da
porta.
Considerando que ela
ainda está presa, nenhuma das alternativas que envolveria a fuga dela está
correta. Logo, ou ela está apaixonada por mim ou ela queria saber como um
inglês beija. Mas e eu? Eu estava apaixonado por ela? Eu nunca tinha conhecido
alguém que mexesse comigo da forma como ela mexia. Tirou meu sono, me deixou
acordado por uma tarde inteira. Enquanto eu poderia estar dormindo, já que
trabalho à noite.
‒ Em que você está
pensando? ‒ Perguntou Joana, resolvendo finalmente falar.
‒ Em nada especial. E
você? ‒ Perguntei em resposta.
‒ Será que existe
alguma possibilidade de eu sair daqui sem ser morta?
‒ Sinceramente, acho
muito difícil. Toda a Inglaterra acha que você é uma herege. Dificilmente vão
deixar que uma bruxa saia por aí, espalhando suas ideias.
‒ Você ainda pensa que
eu sou uma bruxa?
Parei para pensar.
Minha função, minha religião e minha família diriam que eu tenho que achar que
ela é uma bruxa. Contudo, eu não conseguia mais enxergá-la desta forma. Não
podia aceitar que aquela mulher fosse na verdade uma bruxa com pele de
crocodilo. Nada do que se dizia sobre ela fazia sentido. Como eu poderia
aceitar de bom grado todas as mentiras que o mundo vendia?
‒ Eu não acho que seja
uma bruxa, Joana. Acho que é a mulher mais inacreditável que eu já encontrei.
Se eu fosse escolher uma mulher para casar, seria você. ‒ Eu disse, sinceramente.
‒ Você sabe que eu
nunca seria a dona de casa que todo mundo espera, não sabe?
‒ Por isso mesmo. Qual
a graça que existe nessas mulheres, todas iguais? Eu também não sou um burguês
comum. Não quero viver a vida para levar o negócio da família adiante. Quero
lutar por ideais.
‒ Talvez funcionasse
bem, eu e você juntos.
No momento em que ela
me olhou nos olhos, perdi a compostura. Larguei as armas no chão, abri a cela e
corri para dentro. Ela se levantou assustada. Joguei o molho de chaves no chão
e a beijei. Ficamos naquele beijo por um longo tempo. Foi o momento mais
definitivo da minha vida. Percebi a vida que eu queria ter ao lado de Joana D’arc,
percebi o legado moral que eu queria deixar para nossos filhos, seja na França
ou na Inglaterra.
De perto, minhas mãos
dançavam no seu corpo e pude perceber que era uma mulher comum. De fato, não
havia pele de crocodilo. Sua fisionomia era deveras inacreditável, diferente de
qualquer outra mulher, mas não havia nada de anormal. Nada que justificasse
olhares assustados. Os únicos olhares que aquele corpo merecia eram os de
devoção. Devoção a uma mulher que é linda e tem personalidade, uma joia rara
francesa, que eu tinha agora em meus braços.
Depois de algum tempo
de beijos carícias, sai da cela, sozinho e ela ficou, sem tentar em nenhum
momento fugir. Tive pena da sua situação. Tive medo de que fosse a última vez
que eu provava dos seus beijos. Tive medo. Medo de vê-la queimando em uma
fogueira. Medo de querer queimar junto ao seu corpo. Não. Eu não poderia
suportar vê-la morta em brasas. Olhei mais uma vez para o seu rosto e fiquei
alguns minutos em silêncio, pensando meus pensamentos em total quietude.
‒ Joana. ‒ Eu a
chamei. Ela olhou para mim, com a sua cara de tédio e eu continuei. ‒ Você
aceita se casar comigo?
‒ Claro que aceito,
Wilbor. Mas receio que nosso casamento não irá durar muito. E também duvido que
um clérigo inglês queira nos unir em matrimônio.
‒ A gente não precisa
de clero nenhum. Eu vou te ajudar a fugir. Amanhã, quando eu vier para o meu
turno, eu te ajudo a sair daqui. Podemos ir para Paris e construir uma vida em
conjunto. Lutar pelo mundo que queremos. O que me diz?
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