Antes de qualquer coisa, devo dizer que a história que vou contar não é sobre mim. Não mesmo. Eu e meus 16 aninhos de vida não tivemos tempo de viver algo dessa dimensão ainda, mas conhecer a história dessas pessoas mudou a minha vida. Foi no verão passado, no dia em que eu havia prometido ajudar o Sr. Antônio, um senhor de idade que morava na casa ao lado da minha. Professor de música aposentado e amigo da família há muitos anos, quando minha mãe estava grávida e meus pais decidiram comprar uma casa mais espaçosa. Ele era o tipo de homem que passou por muita coisa na vida, viajou por dezenas de países e por isso ostentava uma coleção de itens bem variados. Passei inúmeras tardes ouvindo suas histórias e admirando sua coleção. Um homem muito sábio e um excelente pianista. As madrugadas na nossa rua eram sempre recheadas com suas músicas.
Ele havia decidido arrumar uma completa tralha que devia estar acumulando há décadas em um grande salão nos fundos de sua casa. Era muita coisa. Móveis. Caixas com livros. Discos de vinil. Mais livros. Eu nunca havia visto tanta coisa em um só lugar até. Reparei que havia muitas garrafas vazias de bebida alcoólica por toda a parte. Em sua maioria, garrafas de whisky.
Não fazia muito tempo que eu havia começado a levar algumas das caixas pra garagem quando, ao erguer uma delas, um objeto caiu no chão e fez um baita barulho. Assim que me abaixei pra pegar eu percebi que era uma caixinha de música. A primeira vista, Sr. Antônio parecia com raiva por eu ter acidentalmente quebrado o seu pertence, mas depois de alguns segundos percebi que não era isso. Ele estava surpreso por aquilo ainda estar ali. Eu me desculpei por ter quebrado e ele disse que tudo bem. Disse também que havia passado anos procurando por aquela caixinha no meio de toda a bagunça e não havia achado. Eu perguntei se aquilo tinha um valor especial pra ele, e ele disse que sim. Dei a caixinha em sua mãe e ele a abraçou como se fosse uma pessoa muito amada. Como um pai que não vê uma filha há muito tempo. Colocou-a pra tocar e abriu um gigantesco sorriso ao ouvir a música. Eu admito que fiquei curioso após assistir a essa cena, e percebendo isso ele me chamou pra perto. Sentou em uma das caixas velhas que estavam próximas a ele, eu sentei em uma menor de frente pra ele. Então ele começou a me contar a história que envolvia aquela misteriosa caixinha de música.
Ele me contou no auge de sua juventude, quando entrou pra faculdade, logo nos primeiros dias de aula, conheceu uma moça chamada Carolina. Conheceu por acaso mesmo, pedindo informação. Não demorou pra se apaixonar por sua nova colega de turma. Com toda sua simplicidade e doçura, Carolina tinha muitos admiradores, e com certeza Sr. Antônio era um dos mais dedicados. Ambos nasceram em famílias prósperas e se identificavam em diversos aspectos de suas vidas. Aos poucos, tornaram-se amigos, mas o desejo de conquista-la estava distante porque ela mantinha um relacionamento sério com um rapaz chamado Jorge já fazia alguns anos. Os dois eram muito apaixonados um pelo outro. Juras de amor frequentes e tudo aquilo que podemos esperar de um sentimento a flor da pele. Jorge não teve a mesma sorte que os dois, era o filho mais velho de uma costureira. Seu pai sumiu logo que ela ficou grávida. Portanto, Jorge trabalhava como peão de obra pra ajudar a sua mãe a cobrir as despesas da casa e ajudava também a criar suas duas irmãs mais novas. Apesar da diferença de realidade, a família de Carolina nunca havia se incomodado com o relacionamento, até conhecerem o Sr. Antônio.
Quando Carolina e Jorge já estavam em tempo de noivar, a mãe de Jorge ficou doente e estava impossibilitada de trabalhar. Jorge não conseguiria sustentar a casa e suas irmãs sozinho. Sabendo disso, a família de Carolina ofereceu ajuda, mas por uma mera questão de orgulho, Jorge recusou. Ele queria conseguir dar conta disso. Afinal de contas, um dia ele pretendia dar uma vida boa a Carolina sem precisar do dinheiro da família dela. Esse era o sonho dele, segundo o Sr. Antônio. A essa altura os dois já eram melhores amigos, ainda que o Sr. Antônio continuasse a alimentar um amor secreto por Carolina. Jorge não podia desperdiçar a única oportunidade de ajudar sua família que havia aparecido, um conhecido dele e de Carolina havia aberto um novo negócio em outra cidade, e como estava dando certo, ele estava precisando de mais funcionários. Ofereceu um cargo no qual Jorge ganharia mais que ele e sua mãe podiam ganhar juntos, então ele aceitou. Era irrecusável afinal. Carolina o apoiou, apesar do coração pesado. Ela sabia que não poderia ir com ele, seus pais jamais concordariam, afinal ela tem uma posição social a erguer. Seria apenas por algum tempo, ele assegurou. Até sua mãe se recuperar ou uma de suas irmãs conseguir um emprego. Então ele voltaria e se casaria com Carolina. Ou assim pensou que fosse.
Os meses foram passando. Carolina e Jorge mandavam cartas um pro outro semanalmente. Estavam ambos sofrendo e lidando de maneira diferente com a saudade. Carolina terminou a faculdade e não demorou muito pra começar a trabalhar como professora de história de um colégio bem conceituado. Sr. Antônio ainda estava terminando sua faculdade de música, quando ele se tornou o porto seguro de Carolina. Sua válvula de escape, por assim dizer. Ele a ouvia, aconselhava. Dizia que tudo ficaria bem. Dizia a ela que Jorge voltaria, eles se casariam e viveriam felizes juntos. O que por algum tempo foi o suficiente pra confortar o coração dela. Enquanto isso, do outro lado do país, Jorge estava dando duro em seu trabalho. Mandava ótimas quantias de dinheiro pra sua família e ainda sobrava o suficiente pra se manter na cidade. A saudade também o estava sufocando, e ele não tinha nenhum amigo. O trabalho já não era distração o suficiente. E então ele tomou a decisão que seria irreversível em sua vida: começou a beber no tempo livre.
Chegou ao ponto em que o próprio Sr. Antônio estava com muita vontade de dizer tudo aquilo que estava engasgado em seu coração. Ele não conseguia evitar pensar em maneiras de se aproveitar da distância que separava Jorge de Carolina. E Carolina estava cada vez mais sentindo os efeitos da saudade. Ela e o Sr. Antônio passaram a se encontrar cada vez mais. Um dia, ele decidiu dar um presente a ela. Um presente que pudesse mostrar que ele sempre prestou atenção nela. Que ele se lembrava de cada conversa. Cada troca de olhares. Cada abraço dos dois. Ele decidiu dar uma caixinha de música porque ele sabe que o sonho não realizado da vida dela era ser bailarina. Um segredo que ele guardava muito bem. Nem mesmo Jorge sabia disso. Era algo que simbolizava a amizade dos dois. Então ele escolheu um modelo e pediu que fosse personalizado pra que a bailarina da caixinha se parecesse mais com Carolina. Ele queria que, quando ela visse a bailarina, se imaginasse realizando seu sonho. Queria que esse presente plantasse pensamentos alegres na cabeça de Carolina.
Ele pensou em tudo. Em cada palavra que disse a ela naquela noite. Em cada passo que deu em direção a casa dela. Em cada suspiro. Só a possibilidade daquele amor ser livre, depois de tanto tempo preso a ele, já o deixava feliz. Após ouvir tudo e receber o presente, Carolina, sem pensar duas vezes, o beijou. Aquele beijo foi mais que um beijo pro Sr. Antônio. Mais do que um gesto de carinho. Foi um pedido de ajuda. Um pedido de ajuda da mulher que amava. Ela estava sofrendo. Precisava dele. E ele é claro, sempre desejou estar ao lado dela. Sempre esteve por perto quando ela precisou. E se não esteve, queria estar. Tentou estar. E tudo aquilo parecia estar sendo pela primeira vez valorizado de verdade por ela.
A partir daí o que aconteceu nos três meses seguintes foi uma aventura. Os dois se encontravam praticamente todos os dias, e pareciam ter voltado a ser crianças. Esses foram com certeza, os meses mais felizes da vida do Sr. Antônio. Do outro lado da história, Jorge bebia cada vez mais, mesmo sem saber o que estava acontecendo entre os dois. Era a saudade. E agora mais ainda, porque Carolina demorava a responder suas cartas. Ele não sabia o porquê e ela fingia que continuava tudo da mesma maneira. Mas ele sabia que não. No fundo sabia que não. E por isso bebia.
Exatos um ano e oito meses depois de ter saído de sua cidade pra trabalhar, Jorge decidiu que era a hora de voltar. Não que sua mãe ou suas irmãs estivessem em condições de arcar comas despesas, mas seu coração estava ruindo aos poucos. E ele bebia cada vez mais. Bebia como se fosse afogar a saudade. E não desistia de tentar fazê-lo. Ele decidiu voltar de surpresa. Até porque não adiantaria mandar uma carta pra Carolina se ela já estava demorando tanto pra responder. Então ele voltou. Quando chegou em sua casa, sua mãe e irmãs sustentavam um clima de velório. Ele achou que fosse porque ele estava com mal hálito por ter bebido, e antes fosse isso. Mas quando foi atrás de Carolina ele descobriu o real motivo de tudo aquilo. Ele pegou Jorge e Carolina namorando na porta da casa dela. Quando olhou, não acreditou. Seu melhor amigo e a mulher que ele amava juntos. Uma traição dupla. E ainda que a amizade dele com o Sr. Antônio tivesse sido forçada no começo, os dois se respeitavam, se apoiavam. Já haviam passado por muita coisa juntos. Já haviam feito muito um pelo outro.
Sr. Antônio disse que aquela foi a última vez que viu seu amigo sóbrio. E uma lágrima caiu de seus olhos quando disse isso. Todas as outras vezes que o viu ou ouviu falar dele ele estava jogado em algum lugar com uma garrafa na mão. Ou em um bar. Ou na rua. Aquele dia tinha sido o pior dia da vida de todos eles. Eles tentaram explicar mas Jorge foi embora visivelmente transtornado sem vontade de ouvir sequer uma palavra. Carolina começou a chorar e tremia muito de tão nervosa que estava. E quanto ao Sr. Antônio? Bem, ele estava mal, é verdade. Mas diferente de Carolina, não estava arrependido. Afinal, ele a amava há muitos anos. Esperou por dias como aqueles por muito tempo. Fantasiava esses dias o tempo inteiro em sua cabeça. Chega um momento em que é preciso ser egoísta e defender os seus próprios sentimentos, porque ninguém fará isso por você, ele pensava na época.
Carolina procurava por Jorge todos os dias, mas o mesmo quase nunca estava em casa. Sua mãe estava piorando por causa da preocupação. E como o filho não estava mais trabalhando, ela foi obrigada a aceitar ajuda da família de Carolina. A mesma visitava a mãe de Jorge diariamente. Sr. Antônio tentava convencer Carolina a desapegar de Jorge de maneira insistente. Ele sabia que se em algum momento ele iria ter chance de conquista-la, esse momento havia chegado. Por isso não dava um passo atrás.
Jorge estava bebendo cada vez mais. Não havia mais momentos sóbrios. Houveram até mesmo relatos de que ele estava pedindo dinheiro e roubando pessoas na rua. Ele nunca ouvia o que Carolina tinha a dizer. Sempre saia correndo quando a via. Talvez porque não queria que ela o visse dessa maneira. Talvez porque seu coração estava tão partido que qualquer palavra que ouvisse com a voz dela o faria sentir dor. Eu não sei. E nem acho que o Sr. Antônio sabe. Mas o que aconteceu foi que, em uma dessas fugas desesperadas, ele atravessou o cruzamento de uma rua movimentada sem prestar atenção. Carolina vinha logo atrás, mas parou a tempo. Não houve dor. Não houve últimas palavras. Talvez um último gole. Pedaços da garrafa de vidro por toda a parte. O melhor amigo dele estava agora morto. E Carolina o havia matado. Sr. Antônio o havia matado. Algumas escolhas ou talvez acontecimentos inevitáveis o houvessem matado. Se ele pudesse, teria colocado a culpa em uma dessas opções. Mas não no álcool. Pra ele o álcool já era uma rotina. Um amigo. E que amigo. Um homem como ele merecia um fim mais digno.
Depois do acontecido, ele parou de insistir. Suas atitudes haviam gerado consequências trágicas. Não era isso que ele desejava. Não era acabar com uma vida. Não era que a mulher que ele amava sofresse tanto. Não era deixar uma família inconsolável. Não pode ser assim que o amor funciona.
E Carolina se culpava. Culpava-se por toda a situação. Pela morte de Jorge. Pela dor e dificuldade da família dele. Pela infelicidade do Sr. Antônio. Se ela pudesse, ela escolheria ser uma mosca ou uma árvore. Pra não lidar com tantas memórias. Ela não se reconhecia. Ela não sabia por que as coisas tinham chegado a esse ponto. Ela não sabia onde estava e nem pra onde ia. Ela chorava dia após dia. Largou o emprego. Estava arrependida. Arrependida de não ter forçado a barra pra ir com Jorge. Arrependida de não ter respondido suas cartas mais rápido. Arrependida de não ter sido forte o suficiente pra lidar com a saudade. Arrependida de ter se deixado levar pelo momento. Talvez até arrependida de ter conhecido o Sr. Antônio. E a maneira que ela encontrou de ficar mais perto de Jorge foi começar a beber também.
Garrafa atrás de garrafa. Ela achava que assim poder compreender melhor os sentimentos dele. O que é claro, não aconteceu. Não é como uma vacina que tem efeitos semelhantes em todas as pessoas. Quanta ingenuidade achar que alguma coisa iria melhorar assim. E diferente dele, ela não fugia de ninguém. Adorava discutir quando estava bêbada. Seja com o Sr. Antônio ou com sua família. Seus pais estavam desesperados pedindo por ajuda. Mas o que ele poderia fazer? O que ele poderia fazer pra melhorar a situação que ele já não houvesse tentado fazer? Jorge estava morto. Isso nunca iria mudar. Ele havia ajudado a estragar duas vidas. Três contando com a dele. E no fundo, ele ainda a amava. Sofria e agonizava por vê-la naquele estado. E com certeza houveram dias em que ele desejava apenas ser uma garrafa de whisky pra tocar a boca dela. Ele estava presente, tentava ajuda-la, mas não havia nada que pudesse fazer. Desde a noite que se declarou pra ela tudo parecia um tanto quanto inevitável.
Em uma manhã qualquer de um dia qualquer. Depois de passar a noite com um cara qualquer em uma cama de um motel qualquer... Ela se foi. Engasgada com vômito. Muitas garrafas e cinzas de cigarro ao lado da cama. Muitos sonhos deixados pra trás. Sr. Antônio disse que não ficou surpreso quando soube. Todos os dias ele esperava acordar ou ir dormir com essa notícia. Ela sabia que ele não passaria de um arrependimento na vida dela. Ele sabia que ela trocaria a vida dele pela de Jorge se pudesse. E talvez ele fosse capaz de fazer o mesmo por ela. Ele enxugou as lágrimas de seu rosto, levantou, e pediu pra eu acompanha-lo. Levou-me até a minha parte preferida da casa. Sua sala de música. Com seu piano e outros instrumentos. Ele sentou no piano e começou a tocar uma música. E eu conhecia aquela música de algum lugar. Não demorou muito pra eu me tocar que era a mesma música da caixinha de música. A mesma música que ele tocava todos os dias. Quando acabou, retomou a história dizendo que depois disso ele continuou trabalhando como professor, e sempre que podia, visitava diferentes lugares do mundo. Por pura distração. Tentando esquecer toda aquela história. Mas não podia. Não conseguia. Afinal de contas, era a vida dele. A vida do seu melhor amigo. A vida da mulher que ele amava.
Ficamos em silêncio o resto do dia, apenas ouvindo Blues em seu velho aparelho de rádio. Quando o trabalho havia terminado, eu me despedi, agradeci pela história e me desculpei mais uma vez por ter quebrado sua caixinha de música. Ele assegurou que não havia problema algum. Naquela madrugada, só consegui dormir depois de ouvir aquela bela canção de novo. E tenho certeza de que os anjos cantam aquela canção do whisky com ele todos os dias. Essa é a história mais triste que eu já ouvi até hoje. Imagine pra ele que carregou isso sozinho por tanto tempo. Quantos dias de sua vida ele não passou desejando que as coisas fossem diferentes? Desejando que ele tivesse sido escolhido?
Cerca de um mês depois, ele foi encontrado morto em sua casa. Causa da morte? Eu preferi não saber. É importante pra mim pensar que ele precisava dividir essa história com alguém antes de deixar esse mundo. E talvez todas as suas outras histórias tenham sido pra me preparar pra isso. Ele me escolheu pra ser a pessoa pra quem contaria tudo isso. E se eu consigo extrair uma lição disso é que, apesar de tudo o que aconteceu, ele nunca a julgou. Em momento algum deixou claro que não concordava com as escolhas dela. É mais que um símbolo de respeito. É uma prova de amor. E ele morreu a amando e acreditando que aquela foi a maneira dela de encontrar o Jorge novamente. Ele respeitava essa decisão. E ao invés de acabar com a própria vida, ele decidiu viver a dor dele. Decidiu aguentar. Eu não imaginava que por trás daquela seriedade e toda aquela experiência de vida existia um coração que reconheceu, diferente dos outros dois, que nenhuma garrafa poderia ajudar. Nenhuma dose poderia curar. Nenhum copo poderia confortar. Se o amor fosse whisky, ele seria um verdadeiro alcoólatra.
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