terça-feira, 29 de setembro de 2015

Silva, 51 anos


 


(Vizinho da vítima)
‒ Então pode ser aqui? Podemos nos sentar? Ótimo. Sabe, imaginava isso bem diferente. Não é um quarto escuro e sujo, e não tem ninguém jogando uma luz forte na minha cara e berrando perguntas pra mim. Quem diria que podíamos fazer isso na minha sala de estar? A propósito, aceita um suco de laranja? Tem um bem gostoso na geladeira e... Ah, vejo que conheceu meu gato. Aramis, se comporte. Estou resolvendo um assunto sério com o detetive. Perdão? Oh, sim. Desculpe-me, você é ocupado, eu entendo. Também já fui ocupado. Vou responder as suas perguntas agora.
...
‒ Para começar, devo me apresentar apropriadamente. Meu nome é João Valério Ferreira da Silva. Como temos uns cinco "Joãos" nesse prédio, sou popularmente conhecido como Silva. Tenho cinquenta e um anos e estou aposentado. Não que eu não quisesse trabalhar, mas perder a perna num acidente de carro foi um bom motivo pra pendurar o chapéu mais cedo. Agora quanto a sua pergunta, deixe-me ver se eu me lembro. A última vez que vi Angelica... Acredito que... Ah, sim! Foi no próprio dia de seu fatídico assassinato. Ou será que foi depois? Talvez... Ora, mas que cabeça a minha, é claro que não poderia ter sido depois. Desculpe-me, acho que fico um pouco nervoso na presença de autoridades. Como estava dizendo, acredito que a última vez que a vi, foi na portaria deste prédio, logo pela manhã. Eu estava conversando com nosso porteiro e zelador, o senhor José, sobre as dobradiças da porta de entrada de serviço. Ela anda bem gasta e está agarrando e rangendo bastante, se tem algo que me incomoda são esses barulhos irritantes. Porém quando a vi sair do elevador, tive que abordá-la. Ultimamente o péssimo hábito dela de ouvir música nas alturas veio se mostrando bem persistente. Mesmo após minhas muitas reclamações e ameaças de chamar a polícia. Uma vez cheguei a discar dois números no telefone, mas sempre fiquei com pena daquela garota, não achava que ela merecia ficar atrás das grades. Mas parecia que às vezes ela pedia por alguma lição. Quem em sã consciência ouve músicas nas alturas depois das oito horas da noite? Toda gente trabalhadora e de bem está descansando a esta hora. Falei bem sério com ela desta vez, mas ela não me deu muita atenção. Passou batida. Acho que estava indo para o trabalho.
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‒ Se tinha algo de estranho nela? Fora ela praticamente ter me ignorado, acho que não havia nada de errado com ela. Talvez estivesse cansada ou distraída, tinha um sorriso bobo na cara. Mas normalmente ela sempre é bem educada e pede desculpas pela barulheira, não sei se aconteceu algo de anormal com ela ultimamente, eu não costumo ficar vigiando os meus vizinhos... Espere! Mas teve algo de estranho, sim. Mais tarde neste dia, eu vi um homem saindo do apartamento de Angelica. Um homem moreno e de cabeça raspada. Tenho quase certeza que ele possuía uma cicatriz no rosto. Pergunto-me se já o vi antes. Não! Não estou inventando nada. E eu só não chamei a policia porque... Porque eu estava ocupado demais o seguindo. Tentei segui-lo, mas não consegui nem chegar à esquina antes de perdê-lo de vista. Quando voltei para o prédio, depois de quase ter caído duas vezes na minha afobação, fui direto ao apartamento da garota. E lá encontrei seu corpo estirado no chão. Ensanguentado com a faca na mão. Os olhos esbugalhados e... Mas o importante foi que liguei imediatamente para a policia depois que vi a cena. Ah, tem certeza de que não quer um suco de laranja? Tudo bem, irei me ater as perguntas.
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‒ Deixe-me ver, normalmente a Angelica sempre me pareceu ser bem reservada, parece dedicada ao seu trabalho. Às vezes saia à noite para festas, eu acho. E às vezes trazia a festa para sua casa. Um bando de marmanjos e sirigaitas transformando a casa dela numa discoteca... Mas que inferno é aquilo! Pelo menos agora isso finalmente acabou. Hahaha. Oh, perdão, não quis ofender a falecida. Mas acho que a senhora deve entender meu ponto de vista. Uma vez eles deixaram a porta aberta e eu disfarçadamente dei uma espiada dentro e aqueles garotos estavam dançando como macacos! Como é? Não! Eu já disse que não costumo vigiar meus vizinhos. Apenas tomo conta para que suas ações, incluindo estas festas que a falecida Angelica fazia, não danifiquem de alguma forma a estrutura e integridade deste belo prédio. Como síndico este é o meu dever. E eu levo isto bem a sério, inclusive todo dinheiro que sobra da minha pensão do exército ao fim do mês eu utilizo para ajudar nas despesas deste prédio. Ah, não havia lhe contado? Eu era militar. E era muito bom no que fazia, levei muito sucatipapo na cabeça, mas cheguei a ser considerado um perito em combate desarmado. Mas atualmente, mal dar um soco eu consigo sem me desequilibrar das muletas. Ah, tem suco de laranja na geladeira. O senhor aceita?
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‒ Claro que tenho tempo para uma última pergunta. Hum. Sim. Definitivamente. As músicas eram tocadas numa altura infernal. Posso apostar que atrapalhava qualquer um do prédio, mas principalmente a mim, que sou... Era o vizinho de Angelica. Mas se este deve ser o fardo do trabalho do síndico, que assim seja. Eu sempre batia a porta dela, mas demorava vários minutos até que alguém lá dentro pudesse me ouvir apesar da música. Já cheguei a perder três peças de cristal da minha coleção. O susto com o estrondo da música foi tão grande que derrubei ao chão as peças que estava polindo. Sim. Eu coleciono artigos de cristal. Não me julgue. Quando você for aposentado vai ter que encontrar algum passatempo, ou então vai começar a ficar maluco. Outro incidente foi com os meus pobres gatos, Athos e Porthos, os irmãos do meu querido Aramis. Um fugiu e o outro se adoentou e faleceu. Tenho certeza que expostos a essas condições, dessas festinhas levadas a níveis insanos nesse prédio acabaram levando eles a estes fins. Parando pra pensar agora, acho que Angelica nunca ligou muito pras minhas reclamações, com meus gatos e meus cristais. Nunca demorava para que ela aumentasse o volume novamente como se nada tivesse acontecido. E eu lá voltava para reclamar e ameaçar chamar a policia. Parece que nunca ouviu falar da lei do silêncio. Isso me irritava profundamente.
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‒ Ah, a senhora já está de saída? Espero que eu tenha conseguido lhe ajudar o máximo possível. Desejo boa sorte com a investigação. Mas antes de sair, será que a senhora aceita um suco de laranja? Está bem gostoso.

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