sábado, 28 de fevereiro de 2015

Era Outra Vez: "Chapeuzinho Vermelho"

50 Tons de vermelho


Mal abri a porta e minha avó já me chamava da cozinha:

 – Minha netinha, venha aqui.
 – Já vou, vovó! – joguei minha bolsa no sofá e fui atendê-la, do outro lado da casa.
 – Como vai a minha linda?  – ela perguntou, apertando minhas bochechas.
 – Bem, vovó. – disse tirando suas mãos pesadas do meu rosto. Mais dois segundos e ficaria com uma marca roxa.
– Não aperta tanto, isso machuca.
-Ah, por favor, eu sou só uma velha – ela pegou a colher de pau que estava em cima da pia e mexeu algo que estava cozinhando.
 – Vai nessa…. - ouvi um barulho de porta batendo. Corri para a sala, mas não havia ninguém.
 – Você ficou louca?  – vovó vinha logo atrás com a colher de pau numa mão e um pano de cozinha na outra.
 – Me dá isso aqui! – peguei a colher da mão dela e andei bem devagar pela casa, tentando fazer o mínimo de barulho possível.
 – Você está louca?  – ela apareceu atrás de mim e gritou.
 – Shhh! Tem alguém aqui na casa.
 – Não tem ninguém. Me dê essa colher.
 – Tem, sim. Ouvi a porta bater.
 – Eu não ouvi nada. – ela falou convencida de que estava certa.
 – Porque está ficando surda, vovó.
 – Mas é claro que não estou, me dê essa colher. – ela arrancou o objeto da minha mão – a sopa vai queimar. Mais tarde vou ligar pra sua mãe, você está precisando de um médico.
 – Que exagero! – voltamos para a cozinha e lá permanecemos até o almoço.
 Comemos em silêncio. Vovó achava que eu estava ficando louca e eu, que ela estava ficando surda.
 – A comida estava ótima, vó. Estou indo. – abri a porta da frente.
 – Tome cuidado para não ter um surto de loucura no meio da rua.
 – Pode deixar, vovó. – saí rindo.
 Em casa, fui obrigada a lavar o banheiro, arrumar a cozinha e outras coisas dignas de uma boa escrava. Imagino que seja isso que minha mãe acha que sou. Terminei tudo depois de algumas horas e saí correndo para o trote da faculdade. É claro que recebi outra tarefa antes de sair.
 – Passe na sua avó e entregue isso. – ela me entregou uma encomenda do correio.
 – O que é?
 – Não sei. Não vou abrir a correspondência dela. Isso não se faz, minha filha.
 – Eu sei, mãe. – ela me deu um beijo na testa – Seu carinho é ótimo, mas beijo na testa?
 – Mostra meu amor por você. – meu senhor, se ela continuasse assim nenhum homem iria querê-la e ela não poderia nem ao menor reclamar. Estava separada há pouco mais de dois anos e ainda não conseguira ninguém. Do jeito que era melosa seria quase impossível. Se ela era grudenta agora, imagina quando ficasse velha? Nem quero imaginar isso.
 Com que roupa eu iria pra um trote? Eu até ligaria pra alguma das minhas amigas, mas depois que saí da escola nenhuma delas entrou em contato durante dois meses, percebi que só preservei um amigo que era homem. E ele não era gay, infelizmente. Com isso, achar uma roupa decente seria difícil. No tira e bota de tantas roupas, consegui me atrasar absurdamente para o trote. Por causa disso, tive que correr pela rua feito louca.
 – Você chegou meio atrasada, não acha?  – perguntou um garoto esquisito.
 – Eu sei, desculpa.
 – E sabe que não perdoaremos, não é?
 – Por favor, não façam nada que me machuque. É sério. – falei na defensiva, parecendo uma criança chorona.- Calma, garota. Não somos monstros, não. Só fique quietinha – o garoto falou com um sorriso um tanto sarcástico. Sentei na calçada e apenas rezei. Para que fui concordar em ir a esse trote? Por que, meu Deus? Será que sou tão idiota assim? E se me colocassem para pedir dinheiro no sinal? Tem uns motoristas meio estressados demais. Eu não queria morrer atropelada. Nem de outra forma. Não tão cedo. Esperei, rezei, me queixei mais um pouco e esperei mais um pouco. Estava pronta. Não sei o que fizeram em mim, mas colocaram um pano em cima dos meus ombros e pintaram minha cara. Não seja algo péssimo, não seja algo péssimo.
 – Agora você está pronta para pedir dinheiro pela cidade.
 – Não! Eu não sou extrovertida o bastante. Não tem como. Sem condições. Eu faço outra coisa.
 – Não, queremos que você faça isso. E nos entregue o dinheiro, claro. Ficaremos de olho em você.
 Andei um pouco pela rua onde estávamos e nada. Fui para outra com meia dúzia de pessoas atrás de mim, para se certificarem de que eu não pegaria nenhuma parte do dinheiro pra mim. Se eu conseguisse algum dinheiro poderia até pensar nisso….
 Meu celular começou a tocar em algum lugar da minha bolsa. Era minha mãe, e com um estalo lembrei. A correspondência da vovó.
 – Então, não estou conseguindo nada. Preciso levar isso para minha avó. Posso ir?  – mostrei a correspondência.
 – E o dinheiro? Precisamos dele.
 – Eu preciso mesmo ir.
 – Não podemos deixar que você seja a exceção do trote. Tem que participar como todos os outros.
 – Mas cheguei atrasada. – no mesmo instante, uma garota deu um sorriso ao garoto que me interrogava. Era o mesmo que tinha me pintado. Ele parecia ser o líder do grupo.
 – Exatamente. Isso a torna especial, não é?
 – Não, não sou especial. – dei um sorriso sem graça, com medo das possibilidades que se passavam na cabeça daquelas duas criaturas que de Deus não poderiam ser.
 – É, sim. – a garota sorriu – Já que precisa tanto ir na sua avó levar isso aí, então você terá que ir assim. – a garota falou isso como se fosse a ideia mais normal e provável do mundo.
 – Não! Eu nem sei como estou.
 – Você está linda. - a garota deu risinho.
 – Por favor. – esperei para ver se eles reconsiderariam aquela ideia maluca. Fiz cara de cachorrinho pidão. Não funcionou. – Tudo bem. Não acredito que vou fazer isso. – encarei-os – Se a velha tiver um infarto ou coisa assim, vocês vão pagar o hospital! E a minha terapia! – eles riram e eu me dei mal.
 Abri a porta lentamente. Se eu falasse baixo, poderia explicar tudo para a vovó. Estava torcendo para que ela não se assustasse ao me ver toda pintada. Enquanto isso, eles espreitavam pela janela da sala. A casa estava quase toda apagada. Isso era estranho, já que estava anoitecendo e vovó tinha medo do escuro. A idade faz certas coisas que não gostamos. Só havia um feixe de luz que vinha do corredor direto do quarto da vovó. Abri a porta lentamente para não assustá-la. Porém, quem levou o susto fui eu. Na cama de vovó havia uma velha, mas não era ela. Era uma pessoa que eu não lembrava de ter visto na vida. Olhei melhor e percebi que a mulher não era tão velha assim. Ela estava usando a touca de banho de vovó e tinha as cobertas até o pescoço. A mulher não me viu. Quem era aquele ser? Quando virou o rosto, notei alguns traços que se assemelhavam a alguém que eu conhecia. Era a vizinha da casa ao lado, que volta e meia vinha tomar café da tarde com vovó.
 – O que você está fazendo aqui sozinha?  – perguntei assustada.
 – O que você está fazendo aqui a essa hora? Já não esteve aqui mais cedo?  – então vi que ela estava segurando o relógio de ouro que fora do pai de vovó e era uma de suas maiores raridades.

- Solta isso!  – me lancei por cima da mulher tentando tirar o relógio das mãos dela. Um segundo depois de meu salto mortal para cima da criatura, a porta da frente abriu e alguém veio correndo da sala. Vovó estava com uma capa vermelha e uma…. O que era aquilo por baixo da capa? Não podia ser! Impossível! Era uma lingerie? A mulher aproveitou a minha distração e fugiu de mim. Quando caiu no chão, pude ver que ela também estava usando uma lingerie. A lingerie da vizinha era mais cavada na bunda e ela estava vestindo um sutiã um pouco mais indecente. Quando olhei para vovó em estado de choque, percebi por meio do espelho que estava atrás dela que estava com uma expressão incrédula. Eu estava usando um pano preto que cobria meu corpo e meu rosto tinha sido pintado grotescamente como de…. O que era isso? Um lobo?


Um comentário:

  1. Seguir o coração, olhar com os próprios olhos, deixar fluir toda criatividade existente no ser. Isto faz emergir o perfume de nossa alma e assim trilhamos nosso caminho com pétalas. Vá em frente!!

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