terça-feira, 3 de novembro de 2015

De Médico, Poeta e Louco todo mundo tem um pouco


Não há crime sem lei. E no caso, a lei era claríssima: Ditados populares eram proibidos a qualquer um. Sendo assim, mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo. E o juízo do poeta é a rima. Como eu era poeta, não me contive. Não há regra sem exceção, e eu tive que ser a exceção. Falei todos os ditados que pude, já sabendo que um dia os falaria e aproveitei que quem ri por último ri melhor, para preparar minha gargalhada para o momento oportuno. Ganhei uma criação de iaques sob os quais deveria manter cautela e ordenhá-los toda manhã.

Vez ou outra, ainda acontecia de eu quebrar as regras e soltar uma ou outra frase de vez em quando. Lembro me que, certo dia, uma senhorinha falava de um homem muito feio e fofocava com uma outra, quando de repente soltou “quem ama o feio?”. Como que um reflexo, eu lhe respondi “bonito lhe parece”. Pronto. Condenado outra vez. Uma outra multa e mais dias de ordenha. Até que o homem de azul me disse: “Esta é a última vez que lhe encontro. A próxima vez que lhe ouvir dizendo ditados, não serão iaques que você ordenhará, mas cabras.” Penei. Tudo menos cabras.

Sabe como dizem, não é: Macaco velho não mete a mão em cumbuca. No caso, minhas cumbucas eram as cabras. Já reparou no modo como elas andam? Sim, parecem que escondem alguma coisa. “Que segredo pode ser esse?” Você pode perguntar. Eu sei. Há uma terrível maldição sobre aqueles que ordenham cabras, eles tornam-se gnomos com o passar do tempo. Não acredita em mim? Bem, o problema é todo seu. O pior cego é aquele que não quer ver. Se você quer ordenhar cabras, se não se importa em cometer esse atentado contra si mesmo, então siga em frente. É melhor dizer “adeus” enquanto ainda pode. Pois eu lhe garanto que quando se olhar no espelho e ver que não tem altura, e sim uma imensa barba, vai lembrar de minhas palavras. Cada um que se governe.

Prometi a mim mesmo que andaria na linha. Não importaria o quão tortas Deus as escrevesse. Eu tinha que obedecer. Tinha que me controlar. Um olho no burro, o outro no cigano. Atenção completa para não cometer um deslize em público. Em casa, toda a liberdade. O que os olhos não veem, o coração não sente. Eu só precisava que ninguém nunca escutasse meus dizeres. Assim, eu saberia que estava a salvo.

Eis que um dia, escandalosa, uma mulher me bate a porta. Pensava eu estar a salvo em casa. Ela veio entrando e me olhou com desespero. Jogou-se no meu sofá e tremeu suas pernas com destreza. Que faria aquela dama em meus aposentos? Que queria de mim? Bem, quem tem boca vai a Roma, só perguntando para saber.

‒ Bom dia, senhorita o que deseja? ‒ Perguntei com toda a pompa e circunstância que um cavalheiro deveria ter ao portar-se como tal.

‒ Bom dia, flor do dia! Oh! Perdoe-me senhor, pelo meu mau-dizer. Acontece que não consigo parar de recitar estas frases horrendas. Então eu pensei que... Bem... Juntam-se as comadres, descobrem-se as verdades. Digo, é dito que o senhor está há um mês sem dizer um ditado sequer, e que era o maior frasista de quem se tem notícia. Como abandonou o vício? ‒ Perguntou a garota assustadíssima, como se temesse por algo grandioso.

‒ Sabe como é, minha querida, a palavra vale prata... ‒ Comecei a dizer. Até que percebi o terror que estava cometendo. Será que ela tinha surgido apenas para me arrancar um ditado? Para me transformar em gnomo?

‒ ...o silêncio vale ouro! Claro! Entendi tudo. O senhor manteve-se quieto por um mês. Recluso no seu lar. É assim que seus ditados não são mais escutados!

Por um lado, senti-me livre como um pássaro. Finalmente estava dita a verdade. Por outro, senti-me ameaçado. Senti que a moça agora tinha poder sobre mim e poderia decidir sozinha o meu destino. Por fora, bela viola, por dentro, pão borolhento. Era assim que eu me sentia. Uma fita dupla face. Mas bem, a função faz o órgão. Decidi ajudar a garota. Aceitei que ela viesse morar comigo e construiríamos um palácio de ditados debaixo do meu teto. Ninguém mais poderia entrar o nosso conforto. Somente eu e ela, enclausurados naquele castelo de falsa recuperação.

O tempo passou como pluma. Todos na cidade pensavam que estávamos em perfeito estado. E como, em tempos de guerra, a mentira é como terra, fizemos desta terra uma terra firme, e fincamos nossa imagem positiva no chão da mais perfeita paz. Foi então que a guria decidiu que já estava na hora de ver o mundo novamente e resolvemos sair juntos para um passeio. O mundo parecia tão diferente de como o havíamos deixado.

‒ Por que esse ônibus parece parece uma banana split? ‒ Ela me perguntava. E então eu lhe dizia em sussurro:

‒ Não julgue um livro pela capa, guria.

E a gente ria, quietos. Rir é sempre o melhor remédio. Reparamos outras coisas estranhas ao longo do caminho. Todas elas bizarras e estúpidas. Homens falavam em caixas, mulheres tomavam remédios de plástico... Cada bizarrice maior do que a outra, cada loucura mais sem sentido que a anterior. Ainda assim, ficávamos assim, cada macaco no seu galho, vivendo nossa sanidade ilegal.

Nos separamos um segundo. Eu queria ir a uma loja e ela à outra. Como não nascemos grudados, saímos um do lado do outro por um breve momento. Outras pessoas me ofereceram companhia. Todos queriam saber como eu tinha me recuperado, mas preferi manter-me desacompanhado. Como dizem, antes só do que mal-acompanhado.

Não demorou muito para que a guria voltasse correndo. Ela aproximou-se de mim e sussurrou ao meu ouvido: “Matei um cara. Era uma cara. Uma mulher. Ela me ouviu.” Corremos até a cena do crime. A mulher estava morta, com uma barra de ferro jogada no chão. “Quem com ferro fere...” ela sussurrou para mim. Um policial olhou para a guria e avançou na direção dela. Como ele poderia saber? Eu vi que ela já esboçava um choramingo. Rapidamente, dei um passo a frente:

‒ Diga-me com quem andas, que lhe direi quem és!

E foi assim que eu me tornei o herói da guria. Ela cuida agora dos meus iaques, já que minhas mãos pequenas me impedem de fazê-lo. Ao menos agora, todos na cidade sabem o que acontece àqueles que ordenham cabras. Ao menos como o gnomo que agora sou, eu espalho alegria com meus ditados. No fim das contas, eu ri por último afinal.



Nenhum comentário:

Postar um comentário