sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Anteu e a Água

 
Anteu não gostava de lugares altos. Ele tinha pavor deles. Subir em uma árvore sem auxílio de cordas para rapel ou algo do tipo lhe causava tonturas e, certa vez, até desmaio. O nome veio do gigante Anteu (filho de Gaia, segundo a mitologia grega), que não podia ser derrotado se estivesse em contato com o chão. O medo, por outro lado, vem da queda do balanço na casa da árvore.

Aliás, seu pai reprovava quando aquele menino de nove anos se encolhia nos cantos, quando garotos mais velhos zoavam dele, pois ele não brincava nem mesmo de pique‒alto. Ao contrário do irmão mais novo, Hércules, que fazia de tudo para se arriscar e aparecer. Ganhando a aprovação do pai.

Às vezes, Anteu se sentia como se a mãe havia destinado os irmãos a viver em guerra. Antes de morrer, a mãe lecionava literatura em uma escola de primeiro grau. Seu assunto favorito? (Caso você ainda não tenha percebido.) Mitologia grega. Segundo o mito, Hércules e Anteu eram rivais (sequer eram irmãos) e Hércules havia matado Anteu tirando do contato com a terra. (Resumindo.) E a vida de Anteu (da nossa história, não o do mito), se resumia a isso: estudar, brigar com o irmão e ser comparado com o mesmo, junto com o sermão do pai. Ah, e para piorar a situação, ele trabalhava aos sábados, na construção, com o pai e suava frio toda vez que o pediam algo, imaginando que o pedido tinha algo a ver com altura. Mas tudo começou a mudar quando ele a conheceu.

No primeiro dia de aula do último ano do colégio, na aula de biologia, ele a viu pela primeira vez. Ela andava pela calçada usando jeans rasgados e camisa de uma banda dos anos 80. Ela poderia até parecer normal aos olhos dos outros, mas só Anteu a reconheceria, pois só Anteu era como ela.

Pois bem, naquela cidade a única coisa fora do comum era COMPLETAMENTE fora do comum. Há mais ou menos vinte anos, crianças "perdidas" apareceram na cidade, dizendo serem "crianças da terra". Elas juravam de pés juntos que haviam nascido de uma enchente, quando a água quebrou as rochas perto do rio. Eram mais ou menos 15. Anteu era uma dessas crianças. E aquela garota também. Ele sabia. Ele sentia.

Naquele dia, ele chegou em casa esperando o sermão do pai, pois ele havia chegado dez minutos atrasado. (Não que ele se importasse.) Mas, ao invés disso, quem o recebeu foi Hércules.

‒Você já leu o jornal de hoje? ‒ O irmão vinha com o jornal na mão e uma maçã na outra. ‒Tem um supermercado que ficou famoso pela venda de esquilos empalhados. ‒O irmão mostrou a foto do tal supermercado enquanto mordia a maçã. Espera! Desde quando HÉRCULES lia o jornal?

Anteu ficou encarando o irmão, esperando o mesmo gargalhar e dizer algo do tipo "te peguei!". Ao invés disso, ele recebeu um olhar preocupado.

‒Anteu, ‒Hércules falou, pondo a mão com o jornal no ombro do irmão. ‒você está bem? ‒Anteu fez que sim com a cabeça e correu para seu quarto.

Depois que ele viu aquela garota, o irmão passou a ser educado, o pai agora fazia as coisas da casa e não bebia e fumava tanto, e até o motorista do ônibus não reclamava mais quando Anteu chegava atrasado. Ele não ouvia mais tanto sermões assim e não brigava com o irmão. Bem, não com a mesma frequência de antes.

Ele não viu a garota nos dias seguidos. Até que, em uma tarde ensolarada, Anteu resolveu sentar em baixo da arquibancada para adiantar a leitura do livro de literatura. Ele NUNCA fazia esse tipo de coisa e justo no dia que ele resolvia fazer...

‒A liberdade está em ser dono da própria vida. ‒Uma voz feminina ressoou. Ele abaixou o livro e a menina do outro dia estava parada à sua frente, sorrindo.

‒O quê?

‒É de Platão. ‒Ela apontou para a capa do livro, onde a frase estava impressa em dourado. ‒É uma bela frase, não acha? ‒Ela disse se sentando ao seu lado. Ela apoiou a cabeça no ferro. ‒Ah, eu sou Gaia. ‒Ela lhe estendeu a mão e ele a apertou. ‒Não a grega. ‒Ela sorriu e Anteu teve vontade de beijá‒la.

‒Eu sou... ‒Ele começou, porém foi interrompido por Gaia.

‒Anteu. Eu sei. ‒Ela sorriu satisfeita. ‒Eu sei muitas coisas sobre você.

‒Ah é? ‒Ele levantou a sobrancelha. ‒Tipo o quê?

‒Seu que você tem um irmão chamado Hércules e que vocês brigam o tempo todo. Sei que, semana passada ele te mostrou a reportagem dos esquilos empalhados. Sei que você é como eu.

‒Como você? ‒Estaria Gaia falando sobre a enchente? Sobre as crianças da terra?

‒Eu também nasci da enchente, Anteu. Só que ninguém daqui me quis. ‒Ela suspirou, deixando os braços e pernas caírem na terra ao seu redor. Pequenos grãos da mesma começaram a subir por seu braço. ‒Então eu fui embora. Mas agora eu voltei. ‒Ela se levantou em um salto e lhe estendeu os braços. ‒Venha. Eu quero te mostrar uma coisa.

‒Mas eu tenho aula agora! ‒Anteu protestou, enquanto Gaia o arrastava, pois ele não havia levantado.

‒Em algumas horas isso não importará mais. ‒Do quê ela estava falando? ‒Você tem tido sonhos estranhos, Anteu?

‒Tenho. Sonhos em que eu pulo de um prédio e, quando caio, meu corpo vira terra.

‒Isso! ‒Gaia bate palmas, saltitando, como uma criança que acaba de ganhar um brinquedo. Os cachos pulavam junto. ‒Ah, Anteu... você fará algo muito importante hoje.

‒Importante como? ‒Agora ele estava curioso.

‒Você verá. ‒Ela disse e eles pararam. Ele olhou em volta. De repente, percebeu que eles estavam em um penhasco. Ele deu um grito e se jogou para trás. ‒Calma, lá embaixo é só água. ‒E pedras, ela pensou, mas não disse. Ela tirou a blusa e o short, enquanto ele se sentava, com as pernas para baixo. Esse era seu limite. Ele respirava fundo, tentando ao máximo ficar calmo. Ele notou que a camisa dela era da Legião Urbana.

‒Você já ouviu "Sereníssima"? ‒Ele deitou na pedra do penhasco. Aves, copas de árvore balançando com o vento que agora batia mais forte. Ele não esperou a resposta dela. ‒Minha mãe cantava ela pra mim, quando eu tinha pesadelos. ‒Ela parou para observá-lo. Certa vez, lhe perguntaram se ela seria capaz de matar algo indefeso. ‒ Sou um animal sentimental/Me apego facilmente ao que desperta o meu desejo/Tente me obrigar a fazer o que não quero/E você vai logo ver o que acontece /Acho que entendo o que você quis me dizer/ Mas existem outras coisas/  Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade,/ Tudo está perdido mas existem possibilidades...

‒Anteu? ‒Gaia o cortou. Ela tinha que fazer logo! Tinha que fazer logo, pois, caso contrário, ela provavelmente desistiria. Ele a olhou. A olhou de verdade. Ela se sentiu enxergada pela primeira vez em muito tempo. ‒Pula comigo?

Ela viu o rosto dele ficar branco e seu coração se apertou. Ela não estava lhe pedindo isso, ele pensou. Lembrou do pesadelo com o pai.

‒G...Gaia, ‒ele começou, se levantando e se desequilibrando, pois o vento já estava bem mais forte. Ele olhou para baixo e desejou não ter feito isso. Eles estavam tão alto assim antes?

‒Eu sei do seu medo. ‒Ela pôs a mão em suas costas. ‒Ele só acabará quando você enfrentá‒lo. ‒Ela pôde sentir ele engolindo em seco. Então, antes que pudesse puxá‒lo para si, o empurrou.

Por um instante, houve silêncio. Anteu só enxergava o pai o empurrando. Porém, o rosto era do irmão, Hércules, misturado com o de Gaia. Quase como se eles fossem a mesma pessoa. Depois ele ouviu a voz da mãe. Então veio o "baque" na água. Gaia ainda ouvia o grito de Anteu quando Hércules pôs a mão em seu quadril.

‒Venha, ‒ele disse, puxando‒a. ‒ele ficará bem.

‒Sim.

‒O quê?

‒Você me perguntou se eu seria capaz de matar algo indefeso. ‒Ela o lembrou. ‒A resposta é sim. ‒Ela apontou para o penhasco, agora consideravelmente longe, com o queixo. ‒E eu não sei o que sinto sobre isso.

‒Você não o matou! ‒Hércules começou com toda a ladainha sobre como o irmão não pertencia ao mundo deles.

Lá embaixo, na água, Anteu se desfazia em pó, enquanto seus grãos formavam novos corpos que surgiriam na próxima enchente. Na natureza era assim. Tudo era reaproveitado. E, agora, ele se sentia parte dela. E o "existem outras coisas", da música, não mais importou.
 

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